Nicolau
Santos
Quinta feira, 7 de fevereiro de 2013
Na
terça-feira. D. Claudete, 92 anos, saco de compras na mão, vinda do
supermercado, finou-se em pleno passeio público, com um AVC fulminante.
D.
Claudete vivia sozinha. A irmã, um pouco mais nova, está moribunda no hospital
há meses. Resta uma sobrinha, desempregada.
Foi
ela que tratou do enterro. D. Claudete tinha uma reforma de 200 euros e nenhuma
poupança. O subsídio de funeral foi cortado. A sobrinha, sem dinheiro, teve de
optar pelo funeral em campa rasa.
No
Alto de São João, vai D. Claudete em seu caixão de pinho, quando um funcionário
do cemitério tenta pregar um número identificativo no esquife. O homem da
funerária impede-o. "O caixão é para devolver", diz. O funcionário
acompanha então o escasso cortejo, de quatro pessoas, com um pau na mão e em
cima o número identificativo.
O
padre, por sua vez, pergunta se as quatro pessoas presentes são católicas
praticantes. Nenhuma é. O padre decide então que não vai acompanhar o féretro.
Um dos presentes explica ao padre, com alguma irritação, que ele está ali por
causa da senhora, católica praticante, e não pelos presentes, e que é sua
obrigação acompanhar D. Claudete à sua última morada.
O
padre permanece na sua recusa, até que a mesma pessoa lhe pergunta quando custa
ir até à campa rasa. 150 euros, responde a santa alma. Recebido o dinheiro, o
padre decide-se então a avançar.
Há
uma escavadora que vai abrindo buracos, que hão de servir de campas rasas, uns
a seguir aos outros. Há terra revolvida e, com a chuva, muita lama. Os sapatos
enterram-se na lama que há de cobrir os mortos sem posses.
Chegada
à sua última morada, D. Claudete é retirada do caixão e colocada no fundo da
campa, através de cordas. O padre, contrariado, lembra que do pó viemos e ao pó
voltaremos. Os coveiros cobrem rapidamente de terra D. Claudete. O funcionário
espeta o pau com o número da campa de D. Claudete. Ao lado, outras cinco covas
esperam os seus destinatários. A escavadora não para. Paf! Paf! Paf! Contas por
alto, só nesse dia havia 45 covas aguardando os donos a quem o progresso da
nação não bafejou.
O
homem da funerária leva o caixão para futuros interessados. Um amigo da
sobrinha desempregada paga parte dos 1100 euros que custa, ainda assim, um funeral em campa rasa.
Está
uma chuva miudinha. Os sapatos estão cheios de lama. Os quatro acompanhantes de
D. Claudete regressam lentamente à vida. Entre eles, não está o ministro das
Finanças, que não foi ao enterro porque não conhecia D. Claudete, nem conhece
milhares de outras D. Claudetes que, um dia destes, se vão finar subitamente no
passeio público ou em casa na solidão. E que só poderão ser enterradas em campa
rasa, porque o subsídio de funeral foi cortado e já nem chega para tanto.
A
D.CLAUDETE
Ai, D.Claudete, D.Claudete...
Em que país nasceste...
Sabe-se lá como pudeste
Viver tua longa vida,
Com dignidade, amor e paz,
Com teus sonhos, alguém amado,
Num labor permanente,
Rija e de cabeça erguida,
Com uns tostões de mel coado,
Mão à frente e outra atrás...
E teu país indiferente,
De ti inteiramente
Esquecida...
Na morte,
Como na vida...
Ai D. Claudete, D.Claudete
Que tristeza,
Que amargura,
Até na hora do fim, da sepultura...
Fizeram da tua pessoa
A figura
Do que se faz numa retrete...
Tenho vergonha,
Tenho vergonha,
D. Claudete...
Rui Borges