Exmº Sr Ministro da Educação e Ciência
Pensei
traduzir a minha indignação, relativamente à alteração curricular que Vª Exª
propõe, mas confesso que a emoção foi tal que tive de esperar algum tempo para,
após fazer algumas inspirações com profundidade, saber como o havia de fazer.
Imagine
que tenho um filho, ou Vª Exª tem um filho por exemplo, e questiono-me como é
que o devo educar. Naturalmente, a minha preocupação começa por contextualizar
um desenvolvimento infantil baseado numa boa alimentação e no conforto de um
envolvimento afectivo familiar (preferencialmente, no mínimo Pai e Mãe).
Eu
percebo e sei, que tal não é possível para todas as pessoas. Uns porque têm que
bulir, sujeitos às necessidades de sobrevivência, outros porque colocam a sua
carreira profissional à frente de tudo, primeiro a carreira depois os filhos e
ainda outros por ganância de dinheiro ou de poder, aspectos essenciais para
lhes alimentar o ego. Encostam-se aqui e ali, juntando-se a outros com os
mesmos dois objectivos e vão constituindo “lobbies” de poder.
Ora
bem, todos sabemos que, nos primeiros anos de vida, é fundamental e importante
garantir à criança um desenvolvimento equilibrado. Não é necessário tirar uma
licenciatura nos EUA. Qualquer Faculdade, mesmo essas muitas dezenas instaladas
há uns anos atrás, sabe-se lá com que objectivo, explicam isso.
Penso
que o referido objectivo foi para valorizar o ensino e a formação das
populações, ou de alguma população. O crescimento deve acompanhar um bom
desenvolvimento. A qualidade dos estímulos a que sujeitamos a criança é
fundamental. O crescimento é-nos garantido por condições saudáveis de vida. Se
a genética não nos pregar nenhuma partida, uma boa alimentação, afecto, equilibrado,
e um funcional enquadramento familiar, multidisciplinar, social e cultural, são
aspectos fundamentais a considerar.
Podemo-nos
questionar o que é um bom desenvolvimento. Este baseia-se, naturalmente, na
particularidade dos estímulos. Começa aqui a nossa discordância.
Apercebo-me
que para si, os factores cognitivos são os essenciais. Vª Exª é um homem do
pensamento. Do pensamento abstracto. Da criatividade, do intelecto. Como se
isso fosse um exclusivo da teoria. Esquece aspectos endógenos como os
idiossincrásicos. Vª Exª está a ver!?
Não
pode, nem deve, ignorar o corpo. É ele que o acompanha desde o primeiro dia.
Aquele que quando não está bem, transmite sintomas que o fazem, preocupado ou
assustado, recorrer ao médico. Aquele que irá ficar consigo até aos seus
últimos dias, quer saiba muita matemática, muitas línguas ou não. Isto é,
independentemente, das suas potencialidades intelectuais, das suas
competências, dos seus conhecimentos, tem que carregar com ele.
Estamos
perante uma realidade universal.
Aquele
corpo onde se dão as reacções químicas que sustentam a vida. Sim, porque é da
vida que estamos a versar. Aquele corpo que o olha reflectido no espelho. Que
lhe alimenta o ego. Que fomenta a vaidade. Que expõe o narcisismo que há dentro
de cada um. Que na intimidade promove um diálogo permanente, nem sempre
pacífico, com o espírito. Como nos diz André Giordan “O meu corpo, a primeira
maravilha do mundo”. Vª Exª vê, já estamos a misturar as coisas. Coisas do
corpo, da sua química e coisas da psique, do pensamento. Pois é, eu cá no velho
e histórico Portugal, estudei que nós somos uma unidade.
Nos
EUA não sei, nunca lá fui. Daí que eu conceba um desenvolvimento harmonioso,
nomeadamente na população infanto-juvenil, considerando essencialmente, a unidade
das áreas, da relação afectiva, cognitiva e motora. Não é por acaso, que por
exemplo, a (OMS - Organização Mundial de Saúde), no combate ao sedentarismo,
propõe um reforço da actividade física na formação geral nos currículos
académicos.
Desculpe
Vª Exª a audácia e o confronto. Não quero ferir susceptibilidades nem
sensibilidades.
Parece-me
que estamos a amarrar os miúdos às carteiras, com a ergonomia que se lhe
reconhece, (muitos miúdos, devido aos “trocos”) e dar-lhes mais do mesmo,
conceitos, fundamentalmente teóricos, independentemente dos ritmos de
aprendizagem e dos níveis de concentração, até eles se saturarem… ou
adormecerem. Atrás do bocejo, vem sonolência, a desconcentração, promovendo
assim o abandono. Desculpe, Vª Exª., mas não previu sequer no tempo de aula
curricular o tempo para os sentar (aos trinta).
Desculpe…
é o meu sentido pragmático de analisar as coisas. Não ligue. Sabe, Vª EXª,
desde Abril de 74 já tivemos, sentados no seu cadeirão, alguns trinta e quatro
ministros, e todos a pôr a mão na legislação. Não hão-de os professores a estar
confundidos e, naturalmente a cair na psiquiatria.
Voltemos
ao hipotético filho.
Ora,
a criança expressa-se e desenvolve-se significativamente, na sua unidade, pelo
movimento. Sobe, desce, empurra, salta, cai, corre, atira, agarra,
equilibra-se, etc..
Atenção,
não nos vamos esquecer aqui, dos protegidos, dos “arrumadinhos” que estão
sempre fechados e privados, não só do convívio em interacção com o outro, mas
também, de se exporem e expressarem através de actividades práticas promotoras
de desenvolvimento activo.
Está
a ver Vª Exª como se começam a imprimir modelos de vida, virados para a
actividade ou para o sedentarismo. Isto numa fase do desenvolvimento de
significativa dependência.
Ora,
como parece que somos seres inteligentes, é fácil perceber o que é mais
saudável. Não nos podemos esquecer que aquelas crianças que estão fechadas, a
família mais próxima que têm é, normalmente, a televisão, com os seus efeitos
subliminares neuromusculares (Derrick de Kerckhove, em “A pele da cultura”,
estuda isto), depois a televisão e as playstation e, mais tarde, a televisão,
as playstation e os computadores.
Digo
família porque eles passam mais tempo sossegadinhos com estes aparelhos, do que
com qualquer elemento da família. Certos pais dizem com orgulho que “O meu
menino não quer sair de casa” (“está domesticado”). Quando eles vivem a
complexa ruptura do abandono da infância, na adolescência, os pais dizem-nos, “Gostava
que ele praticasse algum desporto, mas ele não quer. Não sei o que hei-de fazer
dele”.
Desde
cedo é a publicidade através de filmes coloridos, bem musicados, movimentados,
curtos, variados e com a promessa de uma oferta, a estimular o imaginário (e o
consumo), que prende os mais novos. As mamãs para eles estarem mais
sossegadinhos ainda, até os põem em frente à televisão. Não sei, na minha
ignorância, até que ponto começam aqui a ficar referenciados os níveis de
concentração das crianças. Os rapazes do Marketing sabem isso e agradecem.
É
necessário segurar estes potenciais consumidores. Depois da fase publicitária
proporcionam-lhes o convívio com desenhos animados. Estes, os desenhos
animados, vão acompanhá-los, alternando com os jogos informáticos, até à idade
adulta, e continuam no decorrer desta. Pois, diariamente, podemos usufruir de
desenhos animados e jogos para adultos. Começa-se com “A Branca de neve e os
sete anões” e viaja-se até aos “Simpsons” ou “Family Guy”. Enfim há que
infantilizar. Quanto mais infantis, quanto menos crescerem, mais condicionados
às referências dos primeiros anos e mais consumistas.
Talvez
seja oportuna uma leitura a “Consumed – How markets corrupt children,
infantilize adults, and swallow citizens whole” de Benjamin R. Barber. Isto claro para ler nas
férias numa esplanada à beira mar. Até está em versão “amaricano”. Chomsky
chama-lhe «a fabricação do consentimento».
Temos
ainda aqueles pais, que para compensarem a sua ausência familiar reforçam esta
situação com ofertas destes equipamentos. E… atenção, quanto mais caro melhor.
Mais compensações afectivas. Mais ganhos afectivos. Julgam eles. Estou a
lembrar-me, o que lhe recomendo, do filme português “Adeus Pai”.
E
eu penso, tenho que libertar o meu filho desta imposição, deste padrão de vida
implantado, desta formatação de sujeito.
Exmº
Sr Ministro veja bem a aberração que não é, darmos a liberdade de movimento que
a idade infantil sugere e impõe, potencializar esta motivação que a criança tem
para brincar, interagir, explorar e descobrir. Veja bem a aberração que é
estruturar situações práticas, com segurança, no contexto da aula, situações
estas de grande envolvimento, onde o corpo, na sua unidade, é o objecto de
aprendizagem. Promover actividade física com significado. Desafiando a criança
a novas aquisições. De superação individual. Com esforço. Atenção, digo com
esforço físico e intelectual. Em grupo, onde a criança se expõe e interage,
adquirindo novas amizades e, simultaneamente, evoluindo da dependência para a
independência.
Aprende
a confrontar os amigos na posição de adversários e a aceitar isso como natural.
É aqui que se promovem correctas atitudes e aquisição de valores, de
compromisso e de dever, de obrigação e de reforço das atitudes volitivas.
Será
isto socialização, prática, experimentada e vivida?
Palermices,
não ligue. Não terão os pais, os encarregados de educação e a sociedade, o compromisso
de proteger e defender a formação e o desenvolvimento multifacetado da
personalidade das suas crianças?
Estamos
perante uma proposta cultural de desenvolvimento, de complexidade progressiva,
baseada em acções motoras fundamentais, tal como prevêm e sugerem os PROGRAMAS
de EDUCAÇÃO FÍSICA. Sim, porque existem os programas. Aprovados pelo Ministério
e concebidos para determinada carga horária semanal.
Talvez
o Exmº Sr Ministro ignore a sua existência, ou não queira olhar porque o
fundamental agora sejam os tais “trocos”. Mas eles existem, há já largos anos,
organizados por objectivos gerais e específicos, considerando as capacidades,
as atitudes e valores e, ainda imagine, as competências.
Veja
só, já enquadrava as capacidades de realização por integração de competências.
Como Vª Exª pode verificar trata-se dum conjunto de asneiras, mas existem uns
visionários, inteligentes, que se propõem já tratar desta situação, rever os
currículos e ignorar isto da Educação Física, senão os miúdos não aprendem a
contar, escrever e a ler e, ainda assim, podem-se poupar as referidas “massas”.
É
aqui que lamentavelmente, nutro alguma tristeza pelo significativo esforço, em
vão, de alguns intelectuais, nomeadamente Fernando Savater, Edgar Morin, e
quantos outros.
Repare
Vª Exª que os programas se enquadram numa lógica de verticalidade e
horizontalidade, de objectivos, conteúdos e avaliação de competências, desde o
Pré Primário ao Secundário. Isto está tudo bem “armadilhado”. Olhe, se Vª Exª
estivesse distraído!?
Veja
só Vª Exª o que eles propõem ainda. Oportunistas como são, enquadrados de
acordo com uma lógica cultural de desenvolvimento, e tirando partido da
significativa motivação dos alunos para a prática da disciplina (não podemos
ignorar a satisfação e gratificação das crianças e jovens na realização das
aulas de EF) insistem em continuar a promover os tais estímulos em qualidade,
aumentando assim, a rede neurónia, dado que o cérebro continua a crescer e a
desenvolver-se.
Já
viu Vª EXª o que é sujeitar um filho a situações de confronto controlado, de
interacção, de cooperação, promovendo o espírito de grupo e equipa?
Está
mal!?
E
depois obrigar os miúdos a respeitarem-se, a respeitarem os outros quer como
colegas de equipa, quer como adversários, a respeitar o Professor (a
instituição), a respeitar as regras e normas?
Está
mal!?
Sujeitar
os miúdos a situações de superação individual, a aprender a lidar com a
frustração, a promover o espírito de sacrifício, a consolidar aprendizagens e
evoluir para novas aprendizagens?
Ensiná-los
a lutar pelos seus objectivos, de acordo com os objectivos propostos para
aquisição de novas competências, cada vez mais exigentes e complexas?
Ensiná-los
a exporem-se na tentativa de execuções nas situações de aprendizagem, a
reforçarem a sua inclusão, a admitirem o erro como um desafio para novas
superações, a envolverem-se na estratégia de grupo, a desenvolverem o sentido
crítico perante as estratégias utilizadas?
A
luta pela posse de uma bola.
Mas,
depois, temos o problema deles suarem. Pois é, já me esquecia desse pormenor.
Tudo isto está mal!?
Eles
escolhem, gritam, riem-se, choram, abraçam-se e, veja Vª Exª, que até se
emocionam! Emoção. Quantas aulas de outras disciplinas a promovem??
Eu
sei que isto não acontece na matemática ou no Português. Não há cá “abraçinhos“
nem as típicas manifestações “Olé, Olé, Olá” quando acertam um problema. Mas um
golo, um cesto, merece individual e colectivamente a emoção do grupo.
E,
para chegar lá, o cérebro tem que pensar, rápido, em pressão, como deve
executar ou como deve movimentar-se no espaço perante os outros, equipa e
adversários, de acordo com a actividade padronizada proposta, para ser eficaz.
E isto vale a emoção dum abraço, que alimenta a unidade do grupo, quer no
contexto de aula, quer fora do contexto de aula.
Promove
ainda um clima escolar facilitador das aprendizagens e, consequentemente, evita
o abandono escolar. Já viu Vª Exª, o micro social, grupos, equipas, regras,
normas, árbitros, disciplina, luta, empenho, esforço, estratégia, compromisso
que um simples jogo representa em termos de amostra para o macro social?
Com
a vantagem de não ser simulado, é mesmo vivido e integrado. Repare Vª Exª, a
aula acabou, eles dizem “Já!? Oh professor, deixe-nos ficar mais um pouco”.
Repare Vª Exª, no recreio eles correm todos para a biblioteca para fazer
exercícios de matemática e estudar outros conteúdos. Vá Vª Exª a uma escola e
veja por si.
São
os jogos que os motivam. Estão a treinar. A repetir os conteúdos de EF. Vª Exª
já experimentou ler as observações dos alunos nos relatórios das avaliações das
escolas?
Para
muitos é a Educação Física (EF) e o Desporto Escolar (DE) que os leva à escola.
Vou
segredar a Vª Exª uma questão curiosa: No primeiro dia de aulas depois das
habituais apresentações. Proponho um jogo e, disfarçadamente, observo-os.
Depois vejo, quem tem hábitos desportivos e executa com alguma qualidade, quem
se empenha, quem se retrai, quem tem medo, quem evita expor-se, quem é egoísta,
individualista, quem se expõe demasiado, quem é disciplinado, quem, embora sem
grandes técnicas, é lutador tenta superar-se, quem é extrovertido, quem é
introvertido. A esta observação acrescento uma leitura da ficha biográfica dos
alunos (pais, mães, profissões, empregos, irmãos) e tenho a turma retratada em
pouco tempo.
Tudo
porque a Educação Física tem a particularidade prática de envolver significativamente,
os miúdos, alunos, nas actividades solicitadas. Aqui não estão a olhar para o
professor ou para o quadro fingindo que estão concentrados e estão com o
pensamento distante. Aqui o empenho só pode ser de envolvimento e entrega às
situações de aprendizagem.
Exmº
Sr. Ministro, depois de tudo isto diz-nos que a nota vai deixar de contar para
a média no Secundário!!??
Então
eu estou motivado, esforço-me e depois não conta?
Ainda
assim, com médias de sucesso elevadas em Educação Física, dada a motivação e
empenho dos alunos. Está a prejudicar a grande maioria dos alunos e a esvaziar
e ignorar os compromissos empenhados destes ao longo dos anos. Está a ver Vª
Exª a injustiça e revolta que está a promover?
Tem
razão, Vª Exª é Ministro, logo, tem razão. É evidente, que isto é tudo treta!
Vª Exª, não acredite em nada disto. Até aqueles sujeitos daquela organização da
saúde (OMS), também estão metidos nisto. Veja só que querem que a actividade
física seja diária, como forma de prevenir a doença e promover a saúde.
Mas,
nós estamos protegidos por pessoas inteligentes do Ministério da Educação.
Basta uns minutos por semana de brincadeira e aí estão os hábitos saudáveis de
vida implantados, para toda a vida do cidadão, sem promoverem despesas a médio
e longo prazo na área da saúde. E depois, o que é isso da prevenção da
obesidade infanto-juvenil, diabetes, hipertensão, do reforço da estrutura
osteomuscular, da coordenação motora, da estabilidade psicológica, do aumento
da auto estima, etc..
Tudo
tretas!
Exmº
Sr Ministro da Educação não vou alongar mais este resumo. Vª. Exª dá ares de
inteligente, prove-o, reflicta nesta situação e reconheça que as coisas não
estão bem decididas. Todos nós erramos e por vezes até somos ultrapassados por
certas contingências, mas por favor, não estrague! Compreenda o significado da
luta pela posse de uma Bola.
Romão
G Antunes
(Presidente
da Direcção da APEF-Foztejo, Associação de Profissionais de Educação Física dos
Concelhos do Barreiro, Moita, Montijo e Alcochete
1 comentário:
Um abraço
e obrigado pela partilha
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