Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal
uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução
de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios
contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance,
correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que
ele.
Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um
ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é
identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem
ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai
lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia.
Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era
praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como
«engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os
alunos engraxavam os professores,os jornalistas engraxavam os ministros, as
donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc... Mesmo assim, eram raros os
portugueses com feitio para passar graxa. Havia poucos engraxadores. Diga-se
porém, em abono da verdade, que os poucos que havia engraxavam imenso.
Nesse tempo, «engraxar» era uma actividade socialmente
menosprezada. O menino que engraxasse a professora tinha de enfrentar depois o
escárnio da turma. O colunista que tecesse um grande elogio ao Presidente do
Conselho era ostracizado pelos colegas.Ninguém gostava de um engraxador.
Hoje tudo isso mudou. O engraxanço evoluiu ao ponto de
tornar-se irreconhecível. Foi-se subindo na escala de subserviência, dos
sapatos até ao cu. O engraxador foi promovido a lambe-botas e o lambe-botas a
lambe-cu. Não é preciso realçar a diferença, em termos de subordinação
hierárquica e flexibilidade de movimentos, entre engraxar uns sapatos e lamber
um cu. Para fazer face à crescente popularidade do desporto, importaram-se dos
Estados Unidos, campeão do mundo na modalidade, as regras e os estatutos da
American Federation of Ass-licking and Brown-nosing.Os praticantes portugueses
puderam assim esquecer os tempos amadores do engraxanço e aperfeiçoarem-se no
desenvolvimento profissional do Culambismo.
(...) Tudo isto teria graça se os culambistas portugueses fossem
tão mal tratados e sucedidos como os engraxadores de outrora. O pior é que a
nossa sociedade não só aceita o culambismo como forma prática de subir na vida,
como começa a exigi-lo como habilitação profissional. O culambismo compensa.
Sobreviver sem um mínimo de conhecimentos de culambismo é hoje tão difícil como
vencer na vida sem saber falar inglês.
Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'
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